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As múltiplas faces do fantasma da terceirização na TV

O RecNov, complexo de novelas da Record, foi atingido pela terceirização (foto: Reprodução/Record)
O RecNov, complexo de novelas da Record, foi atingido pela terceirização (foto: Reprodução/Record)

Um dos termos que mais assusta profissionais de TV, assim como também de outras áreas, é a terceirização. O conceito, que remete à transferência de uma determinada atividade para outra empresa, ganhou força nos últimos anos e ainda é visto como um pesadelo iminente – ainda mais quando as atrações envolvidas não têm boa performance de audiência ou comercial.

A terceirização tem múltiplas faces. Há seus pontos positivos e negativos, ainda que no decorrer dos últimos tempos apenas os negativos se manifestaram nos bastidores. A Record é um dos principais exemplos desse modelo e é nele que essa análise se pautará.

23 de novembro de 2015: há pouco mais de cinco anos, o então RecNov, complexo de estúdios da Record no Rio de Janeiro (que naquele ano completava dez anos de operação), pairava um clima de tristeza. No dia em que levava ao ar o desfecho do maior sucesso da sua história recente, “Os Dez Mandamentos”, a emissora demitiu cerca de 500 profissionais.

O número de dispensas era tamanho que o canal chegou ao ponto de transformar um estúdio de novelas em RH. Cinegrafistas, camareiros, assessores, maquiadores, produtores, enfim, todos os envolvidos na dramaturgia que não fossem diretores, autores ou atores estiveram no estúdio A para darem baixa na carteira de trabalho. Muitos profissionais desligados, inclusive, haviam vindo da Globo com promessas – até então cumpridas – de ganhos maiores.

Apesar da tristeza, a Record não estava deixando de produzir. No ano seguinte, a emissora ainda lançaria a segunda temporada de “Os Dez Mandamentos” e “A Terra Prometida”, dois grandes sucessos.

Mudança de CNPJ: a Record preferiu terceirizar sua dramaturgia e a entregou para a Casablanca, antiga parceira de trabalhos como “Turma do Gueto” e “Metamorphoses”.

Tal acontecimento não era inédito: a JPO Produções, de José Paulo Vallone, era quem produzia as novelas da Record nos anos 90, como “Louca Paixão” (1999). As séries especiais do extinto projeto “Especial Record de Literatura”, como “A Tragédia da Rua das Flores” (2012), também foram feitos por uma produtora (Academia de Filmes).

O que não se esperava é que a emissora fosse transferir todo o seu núcleo, que produz novelas em escala industrial e de forma ininterrupta, para um parceiro.

Para o telespectador, nada mudou. Até porque, os profissionais de bastidores são praticamente os mesmos – apenas mudaram de contratante.

A qualidade da produção, se melhorou ou piorou, não cabe à produtora e sim à verba da contratante. Há um penhasco de diferença entre o que a Record destina para uma novela contemporânea não bíblica e para uma bíblica. É o mesmo que chegar a uma agência de viagens e pedir um pacote de férias com R$ 1.000 ou com R$ 10.000. Os destinos, hotéis e passeios serão bem diferentes e isso não é culpa da agência.

As vantagens se limitam à própria contratante. A emissora deixa de se preocupar com detalhes operacionais, técnicos e trabalhistas, deixando de ser uma produtora de conteúdo para ser uma emissora (no sentido semântico, de emitir) de conteúdo. Se você trabalha em um edifício de escritórios, provavelmente a segurança e a manutenção são desempenhadas por empresas terceiras, o que garante, por exemplo, que sempre haja uma recepcionista, uma faxineira e um segurança – independente de quem seja essa pessoa. Impera a impessoalidade e tira do contratante o ônus de lidar com os pormenores de contratação, reposição, dispensa, compra de materiais etc.

A terceirização não é um fenômeno inédito do Brasil. Na verdade, estamos na contramão. O modelo de produção que a Globo impôs, onde ela tem o domínio fim-a-fim, é que diverge de qualquer grande indústria de entretenimento dos Estados Unidos, Argentina e países da Europa, que terceirizam.

A desvantagem se volta contra o próprio funcionário. Não é preciso ser um CEO de uma multinacional para seguir o raciocínio a seguir: o que leva uma empresa a terceirizar? Reduzir custos. Se você contrata alguém para contratar para você, essa empresa certamente não fará isso de graça. Então um funcionário direto que custa R$ 5.000 será repassado para a empresa terceira, que emitirá uma nota de R$ 4.000 – para justificar a economia da contratante. Para não empatar, ela terá que pagar R$ 3.000 ao funcionário. Todos ganham. Menos o funcionário.

E o saldo? É mais do que notório que a Record movimenta o mercado artístico do Brasil de forma artificial (suas novelas movimentam centenas de atores, viagens internacionais mesmo com o dólar a R$ 6, efeitos especiais e investimentos que nem a Globo, com o triplo de audiência, se dá ao luxo de fazer porque simplesmente a conta não fecha).

Ao mesmo tempo que isso remeta à precarização do trabalho (e é), em tempos de crise e de mercado desaquecido há pouco o que se fazer. Talvez sem a terceirização, muitos projetos sequer saíssem do papel e o funcionário do exemplo anterior, que passou a ganhar R$ 3.000 em vez de R$ 5.000, poderia estar desempregado, ainda mais em meio a uma pandemia.

O Brasil pós-pandemia precisa retomar a espiral de crescimento para que o mercado audiovisual também possa se fortalecer, como vinha ocorrendo com as apostas da Netflix e Amazon. Com mais players no mercado, a mão de obra destes profissionais passará a ser valorizada – muito mais valorizada se considerarmos que a Amazon se capitaliza em dólar e gasta em real.

A Casablanca chegou a desligar dezenas de profissionais durante a pandemia (muitos deles dependeram de ajuda financeira dos atores, que não foram desligados) e não encontrou dificuldade para recontratá-los porque o país estava (e de certa forma ainda está parado). Mas em um cenário de ‘céu de brigadeiro’, com o mercado reaquecido, a produtora certamente teria que embolsar uma cifra maior para trazer de volta técnicos sondados pela concorrência. E essa fatura seria naturalmente repassada à contratante, no caso a Record. E, como o público jovem diz atualmente: ‘eles que lutem’. Apenas com o reaquecimento do mercado que a terceirização poderá trazer efeitos positivos também para quem produz.

No mais, a Record foi usada como objeto de discussão por ser atualmente o maior modelo de terceirização do entretenimento brasileiro. Mas não se engane: se ela é a vilã, ela não é a única. SBT (com séries como “Z4” e “A Garota da Moto”), Disney (com “Juacas”), Netflix (com “Bom dia Verônica”) escolhem, interferem, mas não produzem e seguem o mesmo ‘modus operandi’ que o explanado acima.

A diferença se limita à magnitude do negócio: com esses últimos, estamos falando de séries, que são projetos curtos e trabalhados quase que de forma artesanal; com a Record, falamos de novelas que ultrapassam 150 capítulos – e com outra na fila para ser feita, em um ritmo de produção industrial.

João Gabriel Batista é publicitário, com pós-graduação em Marketing and Sales na Escola de Negócios Saint Paul e MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Tem 29 anos e atua com marketing há 11, com passagens por veículos de comunicação, como emissora de TV, rádio e jornal, e multinacionais do segmento de telecom. É analista de mercado e negócios no TV Pop, com publicação nas manhãs de terça-feira. Converse com ele por e-mail em [email protected]. Leia aqui o histórico do colunista no site.

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