O processo de terceirização de todo o núcleo operacional da Globo, antecipado pelo TV Pop com exclusividade na manhã de quarta-feira (6), poderá ter impactos que vão além das cifras financeiras — que são o mote desse projeto, caso ele realmente venha a ser implementado. O tão consolidado Padrão Globo de Qualidade estará ameaçado e certamente o maior desafio será mantê-lo mesmo diante de tantas iminentes adversidades que esse novo modelo trará.
Ao se terceirizar o departamento operacional, deslocando profissionais como câmeras, operadores de áudio, switcher para empresas terceiras, tem-se grandes economias: a emissora deixa de arcar com custos de pessoal e passa a receber uma nota fiscal de uma empresa terceira que passa a ser responsável pela contratação, demissão, direitos trabalhistas e toda a gestão administrativa que um contratado tem.
Se um colaborador que tem em sua carteira um salário de R$ 3.000 (e os demais direitos e benefícios inclusos) e a contratante decide repassá-lo a uma outra empresa, isso é feito por uma razão simples: economia. Logo essa outra empresa não emitirá uma nota com o mesmo valor.
E essa outra empresa também precisa ter seu lucro — o que faz com que o colaborador saia perdendo na ponta, com vencimentos menores ou, na melhor das hipóteses, perda de benefícios importantes como plano de saúde com ampla cobertura, PPR (Plano de Participação nos Resultados, o famoso bônus), ou os mimos que empresas do porte da Globo oferecem aos seus colaboradores, como kits de frios no Natal. Em linhas gerais: trata-se da precarização da profissão.
Quais serão os impactos?
Há diversos impactos em uma estratégia como essa. O primeiro deles é que para vários profissionais do ‘chão de fábrica’ a perda de salário ou benefícios poderá fazer com que a profissão deixe de ser interessante e migrem para outros mercados.
Também poderá haver o fenômeno de migração para outras empresas concorrentes – sobretudo em uma fase em que Netflix e Amazon, que ganham dinheiro em dólar, estão investindo no Brasil no melhor momento: em que o real está desvalorizado e um dólar injetado se torna quase seis reais por aqui.
Ainda que Netflix e Amazon também não tenham profissionais diretamente contratados, com seus orçamentos elas podem trazer justamente quem perdeu salário e benefícios na Globo, mas que foi treinado por ela – pela empresa que é referência em audiovisual na América Latina. Isso fará com que a curva de aprendizado das concorrentes seja abreviada e a qualidade da produção das rivais se torne melhor.
Tendência internacional
Na maior parte do mundo, inclusive em mercados de entretenimento como o dos Estados Unidos, os modelos de terceirização estão enraizados desde sempre. No entanto, pouquíssimos mercados — para não falar nenhum — trabalha com o ritmo de produção da Globo. Excluindo o período pandêmico, a emissora acumula por baixo dez novelas passando por seus estúdios em um ano: em média duas produções por faixa horária e as que estão sendo gravadas para sucedê-las.
Essas novelas são produzidas enquanto vão ao ar. Ainda que comecem com 20 ou 30 capítulos prontos, essa margem se reduz dia a dia e não raramente o último capítulo é gravado dois dias antes de ir ao ar. Uma novela de sete meses no ar pode facilmente ter 12 de produção.
Esse ritmo é diferente da maioria dos mercados. Além de não serem grandes produtores de novelas, os Estados Unidos, por exemplo, têm boa parte do seu entretenimento aportado em filmes e séries. Ainda que ambos, dependendo do gênero, possam chegar a ter mais de um ano de produção (o que não é uma regra), os dois formatos só vão ao ar quando tiverem suas gravações totalmente finalizadas — o que concede uma folga que atende, além de imprevistos, a possibilidade de se aplicar um maior cuidado e linearidade no produto do começo ao fim.
A Globo dificilmente conseguiria aplicar esse modelo, pois deixa de contar com os grupos de discussão e as possibilidades de reverter fracassos alterando os rumos de sua história. Logo, o mercado internacional deixa de ser um parâmetro.
Terceirização é ruim?
Depende. A terceirização é um fenômeno que já vem de algumas décadas, mas costuma ser empregado nas atividades-meio (que não são relacionadas à finalidade da empresa, como um banco que contrata seguranças, faxineiros e recepcionistas) e não nas atividades-fim (que são ligadas à finalidade da empresa, como um ator de novelas para uma emissora de TV).
A reforma trabalhista, de 2017, permitiu a terceirização de atividade-fim. No entanto, nem todas as empresas enxergam sentido em exercer essa prerrogativa nas atividades-meio. Se você administra um prédio e precisa de funcionários para limpeza e o João falta ou é desligado, o José pode substituí-lo e o serviço não é afetado.
Mas se um operador de câmera ou de switcher falta ou é desligado, será tão fácil e imediata a sua substituição? Um café com açúcar em vez de adoçante feito por um colaborador terceirizado que assumiu a função de seu colega tem um impacto baixo e restrito.
E o impacto de um colaborador que desconhece a complexidade de sistemas, dispositivos, máquinas ou até mesmo da linha criativa de um diretor de um produto que é visto por milhões de pessoas no país, seria tão baixo assim?
João Gabriel Batista é publicitário, com pós-graduação em Marketing and Sales na Escola de Negócios Saint Paul e MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Tem 29 anos e atua com marketing há 11, com passagens por veículos de comunicação, como emissora de TV, rádio e jornal, e multinacionais do segmento de telecom. É analista especial de mercado e negócios no TV Pop, fazendo participações sempre que necessário. Converse com ele por e-mail em [email protected]. Leia aqui o histórico do colunista no site e conheça o seu perfil no Linkedin.