A Revista Veja anunciou há alguns dias o pedido de demissão de dois diretores da Globo: Carlos Manga e André Felipe Binder. Algumas horas depois, foi a vez de Maria de Médicis se despedir da empresa por meio de uma rede social. Os três engrossam uma lista que já tem outros quatro grandes nomes (Joana Jabace, Flávia Lacerda, Pedro Vasconcelos e Rogério Gomes). Todos estes citados deixaram o canal no intervalo de 13 meses: Pedro Vasconcelos puxou a fila em fevereiro de 2021.
Mesmo em meio a uma crise sem precedentes no mercado audiovisual, houve casos de quem saísse sem destino definido, como Rogério Gomes. O que explica essa debandada? A indústria evoluiu com novas linguagens e possibilidades. As novelas seguem como grande carro-chefe e maiores empregadoras de atores, autores e técnicos — tanto por sua demanda, que pode chegar a 200 capítulos, como por sua recorrência, já que no espaço de um ano a Globo pode tranquilamente produzir dez novelas.
Mas a popularização das séries ajuda a explicar essa mudança de perspectivas. Os seriados exigem um período de dedicação muito menor que uma novela. Também permitem uma produção mais artesanal, algo praticamente impossível de se fazer com uma novela de 50 minutos de arte por dia, com três ou quatro frentes de gravação simultâneas e que se arrastam por sete ou oito meses. Ou seja: há como exercitar um lado mais artístico e conceitual em detrimento da produção em escala industrial.
Também há a possibilidade de se aventurar em temas que dificilmente se tornariam novelas. A série 3%, da Netflix, é uma ficção científica que aborda um planeta devastado. Qual a chance de a Globo apostar nesta narrativa? Considerando que é um produto extremamente segmentado (e a Globo um canal aberto, que precisa agradar uma grande massa), é nula.
Projeção internacional
Antes detentora de um grande prestígio internacional, a Globo não projeta mais seus títulos e talentos para fora do Brasil como antigamente. A emissora, que chegava a exportar novelas para Portugal quando ainda estavam em curso por aqui, não empolga mais por lá: a novela mais recente exibida atualmente é Bom Sucesso, de 2019. As outras duas são de 2011 e 2012 — Fina Estampa e Amor Eterno Amor, respectivamente.
Em outros países, a Globo passou por algumas situações constrangedoras, como o cancelamento de A Regra do Jogo na Argentina após apenas 30 capítulos. Neste mesmo paralelo, o streaming cresce. A série De Volta aos 15, protagonizada por Maísa e Camila Queiroz e lançada em fevereiro deste ano, chegou a ostentar a quarta colocação dentre os produtos de língua não-inglesa mais vistos do mundo.
A produção é dirigida por Vivianne Jundi, que já havia experimentado o gosto de uma certa projeção internacional com Os Dez Mandamentos, vendida para mais de 20 países, e José do Egito, ambas da Record, mas nenhuma delas com a direção-geral assinada por ela (ambas eram de Alexandre Avancini). Vivianne trabalhou no Gloob, do Grupo Globo, com a bem-sucedida Detetives do Prédio Azul, mas cujo alcance nem se compara ao obtido pela produção da Netflix.
Trabalhar no streaming abre uma vitrine gigante de possibilidades para esses diretores chegarem a diversos países, sobretudo países cuja preferência do telespectador está em séries e não em novelas. Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha e Austrália, por exemplo, têm público apegado aos folhetins, mas não na mesma proporção ou vocação do Brasil e outros países latinos.
Democratização de conteúdo
Pedro Vasconcelos, que inclusive fazia parte da equipe de Rogério Gomes (que deixou a Globo em março após 42 anos de casa), anunciou em janeiro deste ano que iria produzir uma novela independente de 120 capítulos e vendê-la para o mercado. Por que isso é possível? Porque tanto o crédito como o preço de equipamentos e estrutura para produção de conteúdo são muito mais acessíveis hoje que há 20 anos.
Daniel Rangel (Salve-se Quem Puder e Malhação: Vidas Brasileiras) e Heslaine Vieira (Malhação: Viva a Diferença) protagonizaram ao lado de Gabriel Contente e Giovanna Coimbra (ambos de Bom Sucesso) Nosso Tudo Bem, um curta escrito e dirigido por Caio César em 2020. Exibido em uma rede social, o filme foi financiado pela Lei Aldir Blanc com uma verba de apenas R$ 2.500.
Claro que esta não é a regra e que tal produção contou com voluntários, e também não deve ser desprezado o aparato tecnológico e de talentos que a Globo tem para captação, edição, pós-produção, mas um produto como esses teria uma execução praticamente inviabilizada há 20 anos: primeiro porque se precisaria de muito mais dinheiro (câmeras, smartphones, softwares de edição e computadores eram muito mais caros ou sequer permitiam tal trabalho); segundo porque não se teria nem onde exibir (afinal cinemas alternativos se concentram nas grandes cidades e dificilmente o chamado circuito comercial abriria mão de exibir Homem Aranha para alocar algum filme como este).
Com a democratização de conteúdo, tanto para produção como para veiculação, abrem-se possibilidades para todos que estão neste meio. Crises como a da economia ou a gerada pela pandemia serão plenamente superadas em algum momento, mas algumas novidades vieram para ficar e são irreversíveis. O mercado é animador seja para quem está ligado a empresas como Netflix, Amazon e HBO, como também para produtoras. Isso não quer dizer necessariamente que é um mar de rosas quanto a salários ou qualidade técnica, mas a janela foi aberta e há um grande potencial a ser trabalhado. Mais do que nunca, existe vida fora da Globo.
João Gabriel Batista é publicitário, com pós-graduação em Marketing and Sales na Escola de Negócios Saint Paul e MBA em Gestão Empresarial pela FGV. Tem 29 anos e atua com marketing há 11, com passagens por veículos de comunicação, como emissora de TV, rádio e jornal, e multinacionais do segmento de telecom. É analista especial de mercado e negócios no TV Pop, fazendo participações sempre que necessário. Converse com ele por e-mail em [email protected]. Leia aqui o histórico do colunista no site e conheça o seu perfil no Linkedin.