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Do nada a lugar nenhum: uma crônica do nascimento de apresentadores popularescos no Brasil

Foto do cenário de um programa jornalístico (foto: Divulgação)
Foto do cenário de um programa jornalístico (foto: Divulgação)

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Era um programa de sucesso estrondoso. Naquela época – meados de 2008 – já não era tão incomum que um produto baseado em jornalismo vencesse a TV Globo no chamado “horário nobre da TV local”. Aquele produto de uma emissora pouco pretenciosa alcançava altos índices ao apostar no que fosse mais popular e assistencialista. E foi justamente na veia assistencialista que ele surgiu, e é justamente sobre isso que essa crônica vai falar.

Advogado sem grande expressividade no ramo jurídico, aceitou o convite para responder perguntas do povo. Em troca, faturava com a exibição na tela do número de telefone fixo e endereço do seu escritório. Anos mais tarde, ele mesmo me contaria o quanto era impressionante a fila de pessoas que se formava em busca de respostas e orientações absurdamente simples pelas quais aqueles cidadãos extremamente humildes pagavam “valores simbólicos”.

De grão em grão aquele advogado viu a galinha encher o papo e botar ovos de ouro a cada participação no programa popularesco que servia o telespectador de orientações de toda sorte (ou azar), da medicina às vagas de emprego, das dicas estéticas às questões jurídicas mais corriqueiras. A ampla exposição num programa de sucesso acabou por render um novo status ao advogado, que não desperdiçava uma chance de se colocar como defensor dos mais fracos e oprimidos. Esse status foi importante quando a fonte do programa de sucesso simplesmente secou.

Afastado da TV por falta de novos convites, o vaidoso operador do Direito precisou se reinventar até conhecer e se tornar amigo de um jovem diretor de televisão da mesma emissora onde havia feito um pé de meia com participações esporádicas anos antes. Naquela época os números da audiência já não eram nem de longe comparáveis ao sucesso de outras iniciativas da mesma emissora, ainda assim o advogado não pensou duas vezes ao aceitar ser comentarista de uma “atração jornalística” no fim da tarde.

Switcher de uma emissora de TV, o coração de um programa ao vivo (foto: Divulgação)
Switcher de uma emissora de TV, o coração de um programa ao vivo (foto: Divulgação)

Oficialmente, a presença do já “renomado” advogado daria um equilíbrio ao policialesco que exibia chacotas dançantes após a exibição de cada reportagem contendo declarações pitorescas de suspeitos de crimes cometidos na metrópole. O titular do programa era um afamado jornalista, hit do YouTube, mas que não conseguira sair do cruel “marcha soldado” nos números de audiência (1. 2, 1, 2…). Constatando uma notável perda de espaço, o famoso apresentador optou por ridicularizar o quanto podia seu novo parceiro de trabalho. O advogado só apareceria no vídeo enquadrado numa tela dividida apelidada de “chiqueirinho” ou “cercadinho” e jamais conseguia tempo de fala suficiente para concluir qualquer linha de raciocínio.

Trabalhando voluntariamente, firme no propósito, confiante numa experiência lucrativa e mirando algo que só ele enxergava, o advogado engolia cada uma das situações da mais absoluta “vergonha alheia” na esperança de um dia ser o fiel depositário de um golpe de sorte. Em paralelo, tocava seus projetos advocatícios e fundara uma instituição de acolhimento que mais tarde se tornaria beneficiária de um daqueles títulos de capitalização onde o apostador “faculta” a cessão de 100% do direito de resgate para uma boa causa.

Um dia surgiu uma nova oportunidade na TV. O tal famoso apresentador titular do popularesco se deu por vencido e abandonou o posto. Diante da vacância, caberia à direção procurar substituir a altura até mesmo na tentativa de omitir o fracasso da empreitada anterior. Nos bastidores davam conta de que o grande apresentador, mesmo colecionando traços na audiência (estava mais para 0,1; 0,2; 0,1; 0,2…) tinha vencimentos de três dígitos.

Ocorre que ali, de canto, o único morador do tal “chiqueirinho” queria pular o cercado. Perspicaz, ele logo fez uma leitura completa da situação: uma emissora em permanente estado de crise, desafiada a trazer um grande nome, ao mesmo tempo consciente dos altos custos da operação e sem garantias de qualquer retorno. Nesse cenário de caos, ele fez a irrecusável proposta de receber um salário não de três dígitos, mas de três mil reais somado a participações em merchandising em troca da grande chance de sua vida: se tornar apresentador de TV e refazer em nova escala o loteamento de ações de assistencialismo e de oferta de indulgências aos mais humildes telespectadores.

A direção do segmento aceitou e apoiou a ideia. A direção geral se convenceu disso uma vez que os altos custos por um apresentador de verdade não seriam garantia de retorno. Falta de garantia por falta de garantia, venceu a falta de garantia que custava menos, bem menos. Nos primeiros “pilotos” gravados, um desastre atrás do outro. Não me refiro apenas à pauta do programa, e sim ao desempenho do postulante à vaga de apresentador. A péssima atuação, segundo o próprio, fazia parte de um plano para poder surpreender quando de fato estivesse ao vivo na casa do “freguês”. Uma vida pautada em estratégias, tantas vezes inúteis e fracassadas.

A estreia veio sem nenhuma ação de publicidade. O argumento da emissora era fazer aparentar naturalidade na transição uma vez que o novo “apresentador” já figurava na tela antes, ou pelo menos num quadrante de tela, o “chiqueirinho”. E o desastre dos pilotos se repetia. O antigo apresentador partiu levando todo o cérebro do programa dando ao novato a oportunidade de reivindicar seu próprio staff. E é aí que eu entro.

Ao longo dos meses que se seguiram, procurei instruir o aspirante da melhor forma possível. Ocupando o fim da tarde na grade da emissora, revisamos a linha editorial, criamos quadros e situações, reportagens seriadas e nos distanciávamos cada vez mais do assistencialismo sem causa ora arquitetado. Os números de audiência respondiam eventualmente. 5, 6, até 8 pontos. Mas também por vezes – cabe dizer – nos deparávamos com o nada bom, mas velho “marcha soldado”.

Sem poder de ação sobre a parte comercial do programa e descobrindo por dentro como funcionava uma linha editorial seriamente estabelecida, aos poucos o advogado-apresentador testemunhou a derrocada dos planos de tornar rentáveis as entrevistas, participações e conteúdos do programa. No ar era escravo da repetição. Não só pelo fascínio aos jargões que cultivava. Quem tinha a oportunidade de assistir ao programa ao vivo a partir da sala de controle, se impressionava com a habilidade extrema do “doutor” de reproduzir em voz alta “ipsis litteris” daquilo que ouvia no ponto eletrônico.

Funcionava de certa forma por mais que os mais atentos identificassem alguma falta de originalidade na atuação. Em seu favor, ainda poderia ser destacada a teatral disposição em lacrimejar, desabafar e ludibriar o interlocutor com histórias de uma hipotética infância caipira, uma adolescência paupérrima e juventude de superação. Do dia pra noite, a figura empolgada e até preocupada com a motivação da própria equipe começou a se transformar. Ao contrário da habitual “reunião de espelho” (o roteiro do programa) horas antes, chegava direto para o estúdio.

Ao invés das longas reuniões de avaliação de performance, saía do suntuoso prédio da emissora sem se despedir. Errava no ar. Não seguia mais orientações e chegava a fazer de mau jeito as ações de merchandising que, afinal de contas, complementavam o mísero salário a que se propôs receber. Um a um, os poucos anunciantes que deram algum voto de confiança na inusitada investida no comentarista do “chiqueirinho”, foram cancelando os seus contratos. E o antes perspicaz advogado curiosamente não reagia para reverter a notável perda de espaço. Quando a direção geral da emissora já buscava ressuscitar um nome antigo para ocupar a vacância prática do posto de apresentador, finalmente ele se mexeu novamente.

Apresentador decidiu virar "sócio" da emissora e comprou horário para ter programa (foto: Reprodução/Canaltech)
Apresentador decidiu virar “sócio” da emissora e comprou horário para ter programa (foto: Reprodução/Canaltech)

Em uma investida até então sem precedentes, o neo-apresentador ofereceu comprar o horário da grade. Ele deixaria de receber seu mísero salário e passaria a pagar pelo espaço, utilizando a mesma marca e parte da estrutura da emissora, que por sua vez – num sinal claro de desespero – voltou a topar a sandice. A partir dali ele não era mais apenas o advogado alpinista, nem apenas o apresentador sem talento, mas passava a ser dono de um pedaço de televisão. Pegou um atalho sem precisar de qualquer concessão pública, credibilidade, histórico ou uma carreira a zelar. Dispensou toda a equipe que editorialmente vetava participações descabidas no programa e assumiu a direção de tudo como um ciclista assumiria o controle de um teco-teco.

A partir daí, passou a colecionar processos judiciais seja por discursos revelando ódio ou desconhecimento ou até mesmo por erros editoriais. Numa ocasião, por exemplo, identificou uma vítima de crime como suspeito e foi condenado a pagar por isso. Foram poucos meses até que a emissora “caísse em si” e encerrasse a parceria pouco ortodoxa de terceirização de um produto baseado em jornalismo. Mas o fim desse contrato não foi o suficiente para frear a ambição do advogado contaminado pela “mosca azul”.

De malas prontas, mudou de emissora ingressando com o mesmo formato de terceirização de conteúdo numa concorrente ainda mais a bancarrota. Por lá, com advento dos cancelamentos na internet, foi apontado como racista, homofóbico e, por fim, “negacionista” da pandemia da Covid-19 e “antivacinista”. Vacina que não chegou a tempo de salvar o aspirante a “Ratinho” dele mesmo. Esse é um triste retrato da escalada aventureira de uma figura que se colocou por muitos anos como rosto de uma parte do jornalismo local do país nessa fase da nossa história. O final não poderia ser mais inesperado e digno de pena. Que descanse em paz.

Talvez não soubéssemos desse desfecho de vida se as opiniões e discursos odiosos e nocivos fossem assunto de pequenas reuniões familiares, em passatempo na sala de espera do dentista ou na fila de alguma repartição. Mas a falta de estrutura e investimento sério de boa parte dos meios de comunicação abre brechas perigosas e tantas vezes impunes dando espaço simplesmente a qualquer um que queira ocupa-los. Qualquer semelhança com a realidade, quem sabe, pode até ser mera coincidência.

Josuá Barroso é titular da Coluna de Segunda (perceberam o trocadiho?) do TV Pop. Jornalista com ampla experiência em televisão, atuou por mais de doze anos em variadas praças exercendo as funções de repórter, editor, editor-chefe, chefe de redação e gerente de jornalismo. Siga @JosuaBarroso no Twitter e envie xingamentos (brincadeira, mande mensagens carinhosas) para o colunista por e-mail: [email protected]. Leia aqui o histórico do colunista no site. 

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